A LEI DE LICITAÇÕES COMO DISFARCE

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A Lei de Licitações seria a materialização da desconfiança marital narrada em Eclesiásticos? Muitos se lembrarão das palavras do versículo 1, do capítulo 9, daquele Livro, que adverte o homem para que “não tenha ciúme da mulher que repousa no teu seio, para que não empregue contra ti a malícia que lhe houveres ensinado”. Repetindo a indagação, a Lei de Licitações, buscando prever e evitar tantas malícias, não teria culminado por ensiná-las todas, permitindo que as corrupções manifestas passassem a ter ares de legalidade em razão de um bom invólucro jurídico?

A Ministra Eliana Calmon, em entrevista concedida já há tempos (link matéria), afirmou que “ela [a Lei de Licitações] é muito detalhada, muito minuciosa e esse formalismo tem prejudicado a própria execução da lei. Nesses últimos anos, temos verificado a proliferação dos contratos emergenciais, do continuísmo de contratos com preços superfaturados pela urgência e, dessa forma, as empresas se locupletam com esses plus dados pelo governo que desfalcam os nossos serviços”. É o que se tem visto, de fato.

A Lei 8.666/93 e a legislação complementar em geral, no afã de estabelecer regras por demais rigorosas, criaram espécie de labirinto de cortinas, cujo caminho é seguido fielmente pelos justos, mas cujas cortinas são desonestamente atravessadas pelos injustos, de modo que, ao menos em tese, todos consigam chegar ao centro, apesar de uns o fazerem mais rápida e menos custosamente que outros. E os meios de atravessar as cortinas ficaram tão sofisticados, que fazer prova dos atalhamentos se tornou tarefa extremamente difícil e dispendiosa.

Certo que a Lei de Licitações vigente foi promulgada em tempos de escândalos de corrupção (CPI dos anões do orçamento, impeachment de Fernando Collor etc.), e talvez por isso mesmo tenha vindo tão desejosa de impor limites rigorosos. Contudo, o desiderato não foi alcançado, pois criou-se uma babel jurídica cujas dificuldades de cumprimento, em vez de mitigar a corrupção, fizeram-na pulular. O Dr. Joel de Menezes Niebuhr, em artigo publicado no site Direito do Estado (link para artigo), foi muito feliz ao afirmar que: “A nossa Lei de Licitações é longa demais, extremamente detalhista e burocrática, utiliza conceitos inadequados, as opções de mérito são equivocadas, é rigorosa na forma e frouxa na substância. (…) Em vez de acabar com a corrupção, fizemos uma Lei que desconfia dos agentes administrativos, que lhes retirou a autoridade. A nossa licitação transformou-se numa espécie de gincana de documentos, procedimento extremamente formalista e litigioso, que afasta o Poder Público da proposta mais vantajosa e, no final das contas, no meio desse emaranhado indecifrável de regrinhas, abre espaços para a corrupção, justamente o que pretendíamos evitar”.

Não se cuida, de outra banda, de criar normas ad hoc, aplicáveis apenas a alguns poucos objetos ou pessoas, a exemplo do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (Lei 12.462/2011). Trata-se, sim, de rever conceitos e premissas; nada de ‘pode tudo’ nem de ‘tudo proibido’, mas um salutar meio termo: “a virtude não está nos extremos, mas na sua justa medida”, adverte Aristóteles.

Em suma, muito se enganam aqueles que creem que as meras existência e vigência de uma lei altamente restritiva, ou mesmo a sua aplicação, sejam garantias de legitimidade; talvez assegurem apenas o legalismo, um bom disfarce. Não raro, leis muito duras apenas tornam seu descumprimento mais caro e, ao fim, mais vantajoso. E, muito sinceramente, não faltam leis detalhadas; falta uma boa dose de vergonha na cara.

 

Nelson de Menezes Pereira 

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