O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E A OJERIZA AOS FATOS

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No curso da depuração natural dos atos processuais inovadores, qual foi o recurso especial com o advento da Constituição Federal de 1988, alguns ajustes são aplicados às previsões sempre gerais e abstratas da legislação. No que toca ao recurso especial, uma das limitações impostas pelo Superior Tribunal de Justiça, logo em seus primeiros meses de existência, cuidou de absorver nas suas súmulas 5 e 7 o quanto já havia sido consolidado pelo Supremo Tribunal Federal nas súmulas 279 e 454:

Súmula 5 (STJ)  Decisão: 10/05/1990

A simples interpretação de clausula contratual não enseja recurso especial.

Súmula 7 (STJ)  Decisão: 28/06/1990

A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.

Súmula 279 (STF) – Sessão Plenária de 13/12/1963

Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário.

Súmula 454 – Sessão Plenária de 01/10/1964

Simples interpretação de cláusulas contratuais não dá lugar a recurso extraordinário.

Assentou-se, pois, que para aferir a violação de normas federais não seria possível reexaminar provas nem interpretar cláusulas contratuais. Tal posicionamento já parece discutível, sobretudo ao se constatar que ‘reexaminar provas’ e ‘interpretar cláusulas’ para fins de verificação de violação a normas federais (STJ) é bem diferente de ‘simples interpretação’ e de ‘pretensão de simples reexame de prova’ (STF). Em resumo, no afã de vedar a interposição de recurso especial exclusivamente para discutir provas e cláusulas, o Superior Tribunal de Justiça proibiu tais temas até mesmo como fundamentação ou como premissa para revelar desrespeito a dispositivos de normas federais.

Uma vez proscritos os debates sobre provas e cláusulas contratuais – o que por certo em muito aliviou o estoque de recursos a serem conhecidos e efetivamente julgados por aquele Corte -, sobreveio inovação: a partir de então, tratar de fatos também estava proibido. A súmula 7, que cuida de reexame de prova, foi estendida para banir do recurso especial a discussão sobre toda e qualquer questão de fato. Alguns julgados chegam até mesmo, quando aplicam a referida súmula, a aditar ou emendar seu conteúdo, como se depreende do julgado assim ementado, extraído como exemplo dentre centenas de mesmo jaez:

“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO. AUSÊNCIA. REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA  7 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

1. A Corte de origem apreciou todas as questões relevantes ao deslinde da controvérsia de modo integral e adequado, apenas não adotando a tese vertida pelo Agravante. Inexistência de omissão.

2. Não cabe, em recurso especial, reexaminar matéria de fato (Súmula 7/STJ).

3. Agravo interno a que se nega provimento.”

Como se viu acima, a súmula não nasceu tratando de “matéria de fato”, mas apenas cuidava de “reexame de prova” e, se de uma banda somente se provam os fatos, é certo que nem todo fato alegável em recurso especial terá sido necessariamente matéria de prova. Assim a extensão do alcance original da súmula se foi consolidando, até que seu verdadeiro sentido se tornou quase imemorial e completamente deturpado.

Rememorando: da ampla previsão constitucional de cabimento de recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça fez porta estreita, barrando a entrada (i) de reexame de prova, (ii) de interpretação de cláusulas contratuais e (iii) de qualquer matéria de fato.

“Nada é tão ruim que não possa piorar”, dizem os pessimistas, e a nefasta previsão se concretizou quanto à modalidade de recurso examinada. Recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça conseguiu, por incrível que possa parecer, limitar ainda mais o espectro dos temas discutíveis na sede especial. No caso mencionado, o recorrente havia apresentado apelação perante o Juízo de Primeiro Grau, com destino ao Tribunal Estadual, mas o Tribunal Estadual negou seguimento à apelação ao argumento de que teria sido interposta por fax. O debate se estendeu até o Superior Tribunal de Justiça, que rejeitou o recurso especial em razão de fundamento absolutamente inovador: afirmou que o recurso de apelação teria sido interposto perante o Segundo Grau, quando deveria ter sido apresentado à Primeira Instância! Em suma, o Superior Tribunal de Justiça erigiu um novo elemento e, com esteio nesse dado novo (e inverídico), rejeitou o recurso especial.

Impossível não citar novamente os pessimistas: “depois da queda, o coice”. Contra aquela decisão que afirmou que o protocolo ocorrera em Instância equivocada, o recorrente opôs embargos de declaração, eis que a decisão se fundava em evidente erro de fato por considerar algo que jamais ocorreu. Mas os embargos foram desprovidos, sob alegação de que o debate sobre o local de protocolo da petição de apelação (debate que somente teve início com a decisão do próprio STJ) “refere-se a uma circunstância fática, esfera sobre a qual o Tribunal de origem é soberano. Para a apreciação do recurso especial, instrumento de natureza extraordinária, o debate restringe-se à análise da tese jurídica”.

No caso concreto usado como exemplo prático, o Superior Tribunal de Justiça, o mesmo Tribunal que pela primeira vez suscitou a questão do local de protocolo (erroneamente, repita-se), afirmou que não poderia tratar daquele mesmo tema por consubstanciar matéria de fato definida na Instância Ordinária! O tema jamais discutido, o tema surgido em decisão proferida pelo Ministro Relator no bojo do recurso especial, não poderia ser discutido em sede de recurso especial!

E o mais curioso (ou seria mais lamentável?) é que nem mesmo se cuida propriamente de um fato, mas de um verdadeiro ato processual! Ora, o Superior Tribunal de Justiça não pode analisar os contornos de um ato processual: onde se deu, em que data e horário etc.? Claro que pode! Pode e deve! Aliás, no caso concreto até mesmo o fez, mas apenas para rejeitar o recurso. À vista disso, será que agora podem analisar matérias de fato (e mesmo atos processuais) apenas para rejeitar recursos, mas não para provê-los?

A ojeriza aos fatos (e agora até aos atos processuais) foi um escudo erigido pelo Superior Tribunal de Justiça em autodefesa, mas o escudo não para de crescer. A antiga porta larga do recurso especial, qual idealizada pelo constituinte, se converteu, por obra do Tribunal, em estreita fresta a qual poucos conseguem transpassar. É a lamentável realidade de um sistema que passou a se contentar em julgar processos, sem preocupação de fazer justiça.

 

Nelson de Menezes Pereira